A Prefeitura da capital gaúcha sempre se orgulhou, ao menos no discurso, da participação popular nas tomadas de decisões. Conforme descrito no próprio Plano Diretor de Porto Alegre, a revisão de 2010 “foi o encontro de duas consagradas bandeiras: a Porto Alegre do Planejamento Urbano e da participação dos cidadãos, através do Orçamento Participativo, e a Porto Alegre dos Conselhos Municipais e da Governança Solidária Local”.
Apesar de afirmar que o planejamento urbano nunca havia sido tão debatido, houve muitas críticas ao processo. Algumas pessoas, como João Telmo de Oliveira Filho e Fernando Weiss Xavier, afirmam que as audiências possuíam um caráter deliberativo, marcado pela forte atuação de agentes do setor imobiliário a favor dos temas de seus interesses.
O regime volumétrico do Plano Diretor é fortemente indutivo de tipologias em uma ou mais torres sobre bases extensivas, com afastamentos progressivamente maiores em função da altura, o que privilegia o remembramento de lotes e escolha de glebas de maior tamanho. Ou seja, em Porto Alegre, normalmente um terreno acaba sendo mais valorizado quando junta-se à algum vizinho. Isso acaba beneficiando as grandes incorporadoras que conseguem fazer um investimento maior.
O controle excessivo do planejamento impede que o desenvolvimento urbano responda às demandas dinâmicas de transformação, gerando resultados indesejáveis. A produção imobiliária se adaptou a este cenário e, de certa forma, o retroalimenta, promovendo a verticalização de “projetos carimbos” que possibilitam a reprodução da planta e reduzem custos, além de valorizar os apartamentos mais altos.
É sabido que certos agentes do setor imobiliário possuem forte influência sobre a legislação urbana de Porto Alegre. Também não se pode negar a importância que grandes atores têm para o desenvolvimento da cidade, o que talvez justificasse o tratamento diferenciado que sempre receberam por parte do poder público. Todavia, cada vez mais essa influência ultrapassa os limites de uma competição justa no mercado imobiliário.
O Decreto nº 20.655, de 13 de julho de 2020, como forma de incentivo à retomada econômica da construção civil, determinou análise prioritária de processos de licenciamento urbanístico e ambiental para empreendimentos não residenciais com área total construída igual ou superior a 1000m²; empreendimentos residenciais com área total construída igual ou superior a 5000m²; e empreendimentos voltados à prestação de serviços de farmácia e médico-hospitalares, como hospital geral, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada. Alguns condicionantes foram incluídos, como o comprometimento de iniciar a obra ou concluir as fundações em até um ano após a aprovação do projeto, e o protocolamento em até 30 dias para a concessão do benefício.
A Prefeitura mostra boas intenções na sua vontade de reaquecer o mercado imobiliário com grandes empreendimentos, ajudando em uma fase complicada de Licenciamento em Porto Alegre, agravada em meio à pandemia. Nos últimos anos, para se aprovar um projeto arquitetônico na capital gaúcha levava-se, com prazo bastante otimista, pelo menos seis meses. Uma dificuldade, entretanto, que todos têm que passar independente do tamanho do seu projeto. O que o Decreto faz, na prática, é mais uma vez penalizar as pequenas e médias construções, que levarão ainda mais tempo tramitando, embora possa ter menor complexidade do que grandes projetos.
O que o Decreto faz, na prática, é mais uma vez penalizar as pequenas e médias construções, que levarão ainda mais tempo tramitando, embora possa ter menor complexidade do que grandes projetos.
Uma série de dúvidas adicionais surgem sobre a validade do decreto. Por que favorecer atividades como farmácias, que não só parecem estar presentes em cada esquina como é um dos poucos negócios que conseguiram aumentar seus lucros durante a pandemia? Ainda, até que ponto o prazo de um ano para iniciar a obra ou concluir fundações é condicionante, dado que este é o tempo usual nas práticas de mercado da cidade? E dada a limitação na agilidade do licenciamento, se projetos grandes terão prazos reduzidos, projetos menores terão seus prazos aumentados?
O poder público deveria trabalhar para todos, sem o favorecimento de “campeãs municipais”. Para realmente reaquecer a economia precisamos de um Escritório de Licenciamento ágil, necessidade histórica da cidade e que nenhuma gestão conseguiu resolver de forma estrutural. O foco deveria estar em desburocratizar etapas de aprovação de projeto, agilizar os despachos que levam mais de mês apenas para enviar a documentação ao setor responsável, ou mesmo criar a figura do arquiteto e urbanista responsável pelo projeto, assim como o engenheiro é responsável pelo cálculo estrutural — com responsabilização jurídica — eliminando a necessidade de revisão por parte da prefeitura.
É importante destacar que a administração pública vem trabalhando neste objetivo de desburocratizar a aprovação e licenciamento das edificações. A digitalização do arquivo do Escritório de Licenciamento, ou a tramitação online de serviços urbanísticos e ambientais são bons exemplos desta gestão. Mais recentemente o Decreto n° 20.542 de abril de 2020 passou a dispensar a vistoria para expedição da Carta de Habitação, deixando a responsabilidade para o arquiteto ou engenheiro da obra.
A complexidade regulatória já beneficia as grandes incorporadoras que têm departamentos especializados não só em entender o processo regulatório como influenciá-lo. A prefeitura, ao agilizar determinadas aprovações, está optando por ajudar alguns, ferindo o princípio da isonomia que lhe cabe. É preocupante este incentivo aos grandes com a ausência de políticas claras aos pequenos e médios incorporadores que, embora mais distribuídas pela cidade, representam uma importante parcela do mercado.
Nota de edição: em sua versão original, o texto indicava desconhecimento em relação à emissão de Cartas de Habitação dispensando vistoria. No entanto, na mesma data da publicação, foi verificado que estas emissões já foram, de fato, realizadas.